Apoiadores

3 de nov. de 2013

DA RESISTÊNCIA À ESTUPIDEZ E VAIDADE HUMANA

       por Luiz Orleans



A Salvador Allende

(herói latinoamericano)


Não podemos imaginar ser o fim da história.
Construir no sentido do umbigo e esquecer os lados;
Principalmente o nosso - aquele do coração.
Fico vermelho só de cogitar do desastre de voltar para casa
Sem o sentimento do dever cumprido,
Da segurança de que o bastão foi passado para a pessoa certa.

Malditos sejam todos os que cospem no prato de comida

Que o povo pobre lhes oferece: 
Feijão, farinha seca, carne-magra e água-de-beber, do pote!!!

Que sejam tragados pela justa menção como estúpidos

Nos livros de história.

  
 Assim seja, pelo bem e reconhecimento daqueles que andam, Veem e vivem as razões mais distintas deste povo.
_______________________________
Salvador (BA), primavera meridional / 2013.

UM DIA INSÓLITO – visita a dona Heloísa Ramos e enterro de Luís Gitaí, em meio à Greve dos Garis de Maceió| por Luiz Orleans




 Foto: Rubens Jambo, Heloisa Ramos, Geraldo de Majella e Luciano Aguiar na sede do PCB em Maceió, em 1986.  (créditos fotográficos: Cleide Maia).


S

ábado (precisamente 22 de março de 1986)! Oh! maravilhosa manhã de sol que apenas a nossa provinciana Maceió possui... Lembro-me que encontrei Geraldo de Majella na sede do PCB, um velho casarão da Moreira Lima, nosso espaço político e cultural, ele aguardava-me  para de lá seguirmos rumo ao Hotel Beiriz, atual sede da perícia oficial da polícia civil, situado na Rua do Sol, onde se hospedara dona Heloísa Ramos, viúva do mestre Graça, a qual faríamos visita para despedir-nos da querida velha militante que retornaria para o Rio de Janeiro.

Ao chegarmos lá, fomos recebidos por dona Heloísa Ramos na recepção do Hotel. Sempre sorridente e simpática, a velha senhora apresentava nas faces profundo contentamento com nossa visita. Na nossa conversa, expôs a alegria e disposição militante de contribuir com o ativismo comunista dos jovens alagoanos, reconstrutores do partidão, a organização política do seu coração ao qual a fizera viajar para Maceió e se fazer presente às comemorações do 64º. Aniversário do PCB - era março, como o seu coração, de um vermelho suave, para além do pôr-do-sol na Lagoa Mundaú.

Com tal vigor revolucionário e amor ao Brasil, dona Heloísa continuava a sanha do seu Graciliano, nosso querido escritor-maior das Alagoas. Alguns diziam, a boca miúda, nos bastidores da nossa vida partidária, ser comum e rotineiro ela reunir círculos de amigos para angariar recursos, com o objetivo de financiar a causa dos lutadores pelo socialismo nas terras dos Cahetés.

           A conversa não demorou muito, recordo, porquanto tínhamos como missão comparecer a um enterro. Depois de sair do Hotel, onde permanecera a doce Heloísa Ramos, eu e Majella seguimos para o Cemitério Nossa Senhora da Piedade, no bairro do Prado, onde acompanhamos o cortejo fúnebre de um camarada histórico do partidão, Sr. Luís Gitaí. Tratava-se de operário aposentado do Fernão Velho, bairro operário da velha Maceió – diz-se ter sido conhecedor autodidata do marxismo, mesmo em se tratando de pessoa não alfabetizada, contudo, atento auscultador dos clássicos do socialismo, memorizava-os em sua imensa galeria cerebral. Nesse dia houve uma greve geral dos Coveiros que atingiu os serviços do mais antigo Cemitério de Maceió. Os trabalhadores estavam paralisados e insensíveis a qualquer possibilidade de apelo alheio para enterrar os cadáveres de cidadão e cidadãs maceioenses; alheios a dor famílias chorosas a exigir o justo respeito aos mortos e reconhecimento do direito dos entes cultuarem suas sagradas tradições, como Antígonas modernas, e as autoridades da cidade em assegurar a sanidade do ar (sic).

Após entendimento conosco, que formamos embaixada para negociar a liberação do sepultamento do corpo do operário (os representantes do partido ao enterro do velho camarada, junto ao Comitê de Greve dos Garis), tendo sido exposto o  perfil do defunto, a resistência total chegou ao fim – pelo menos em relação ao clamor para o sepultamento do operário Gitaí. Os coveiros, solidários com o velho comunista e sua pranteante família, aceitaram interromper a greve “todos insepultos” e dar seguimento aos ritos do enterro do camarada Luís Gitaí.

Na volta para casa, pensando com meus botões, entendi: sepultam-se os homens, ficam os sonhos, pois sonhos não envelhecem.

_________________________________________

12 de set. de 2013

11 DE SETEMBRO, 1973 - LÁ SE VÃO 40 ANOS...

Palácio de La Moneda, Santiago - Chile  -  Pres. Allende e membros do governo se defendem do ataque dos golpistas. 
"Uma imagem vale por mil palavras"| A memória coletiva é um bem precioso, produz o resgate da verdade, incomoda a ignomínia. Sacudir o pó dos tempos é a responsabilidade de todos aqueles que ousam lutar, mesmo sem a garantia da vitória em seu tempo. É preciso ser forte, sensível e sereno para acreditar que há tempo para tudo, inclusive para resistir à tentação de ousar ir mais além.

Para os que partiram, minhas lágrimas fraternas; para os que ficaram, desejo sorte na continuação da caminhada. O tempo há de sorrir; com ele, a brisa virá para acalentar o sono infantil das nações que ainda engatinham rumo à soberania, com plena liberdade para os seus povos.

31 de ago. de 2013

CABEÇA DE POETA, SOPRO DE VENTO

por Luiz Orleans


Menestrel [imagens do Google)
Fora do ar, comporto-me como um espírito livre
Nessa condição, de ser liberto das peias do centro das coisas,
Construo elucubrações para além das enciclopédias.
São versos que revolvem o tecido molecular das grandes 

                                                                                  [aspirações,
Aprofundando-se nas imprecisas mensagens dos que ousaram
Ouvir, tocar, provar e falar sobre as coisas contidas na Caixa de

                                                                                               [Pandora.
No entanto, saibam todos, as bibliotecas não reterão tais manuscritos.
 - proscritos pelo genial dono-de-tudo, não foram editados.

Desalento?



A mancha na alma é maior quando chega o final do dia.
Ao crepúsculo de tudo, as palavras pensadas, contudo, não editadas,

                                                                                           [somem no vazio.
As grande obras tornam-se nada na poeira do tempo.
Sem registros em pedra ou quaisquer fósseis para além das eras,
                                [negam-se em si as pegadas de tantos e tantas.


Dinossauros, homens, baratas; cada um cada qual, impotentes vitimas, 

                                               [sem abrigo que os protejam da fúria celeste
                                                                 de devastador meteoro assassino.

Sendo tão assim, meio lânguido sopro de flauta de fauno,
aboio de vaqueiro das matas brancas,
ou mesmo glorificante canto gregoriano;
sem se aperceber, foram-se embora os versos perfeitos
que um poeta andarilho ousou, mesmo que mentalmente, produzir.



Salvador, BA - Brasil | Inverno meridional, 2013

8 de ago. de 2013

PROBLEMAS NO PARAÍSO

|Livro recém lançado da Boitempo conta com artigos de diversos articulistas de esquerda que se debruçam sobre os eventos que "incendiaram" as ruas de grandes e médias cidades brasileiras, no outono-inverno meridional (junho e julho). Destes, aqui, publicamos artigo de Slavoj Žižek [título em destaque, acima]. Já encomendei o meu exemplar...

Artigo inédito enviado pelo autor para a editora Boitempo publicar no livro “Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil”, com previsão de lançamento para o final de julho. Publicado no Blog da Boitempo. Tradução de Nathalia Gonzaga.




**********
Em seus textos de juventude, Marx descreveu a situação alemã como aquela em que a solução de problemas particulares só era possível através da solução universal (revolução global radical). Ali reside a fórmula mais resumida da diferença entre um período reformista e um revolucionário: em um período reformista, a revolução global continua a ser um sonho que, na melhor das hipóteses, sustenta nossas tentativas para aprovar alterações locais – e, no pior dos casos, impede-nos de concretizar mudanças reais –, ao passo que uma situação revolucionária surge quando se torna claro que apenas uma mudança global radical pode resolver os problemas particulares. Nesse sentido puramente formal, 1990 foi um ano revolucionário: tornou-se claro que as reformas parciais dos Estados comunistas não seriam suficientes, que era necessário uma ruptura global radical para resolver até mesmo problemas parciais (fornecimento adequado de alimentos etc.).

Então onde é que estamos, hoje, em relação a essa diferença? Seriam os problemas e protestos dos últimos anos sinais de uma crise global que está gradual e inexoravelmente se aproximando, ou seriam estes apenas pequenos obstáculos que podem ser contidos, se não resolvidos, por meio de intervenções precisas e específicas? A característica mais estranha e ameaçadora sobre eles é que não estão explodindo apenas (ou principalmente) nos pontos fracos do sistema, mas também em lugares que eram até agora tidos como histórias de sucesso. Problemas no Inferno parecem compreensíveis – sabemos por que as pessoas estão protestando na Grécia ou na Espanha, mas por que é que há problemas no Paraíso, em países prósperos ou que, ao menos, passam por um período de rápido desenvolvimento, como a Turquia, a Suécia e o Brasil? Com uma retrospectiva, podemos agora ver que o “problema no Paraíso” original foi a revolução de Khomeini, no Irã, um país considerado oficialmente próspero, na via rápida da modernização pró-ocidental, e principal aliado do Ocidente na região. Talvez exista algo de errado com a nossa percepção de Paraíso.

Antes das contínuas ondas de protestos, a Turquia era quente: um modelo de economia liberal próspera combinado com um Islamismo moderado e de “rosto humano”. Apta para a Europa, mostrou-se um contraste bem-vindo em relação a essa Grécia mais “europeia”, presa em um antigo pântano ideológico e destinada à autodestruição econômica. É verdade que ocorreram alguns sinais ameaçadores (a insistente negação do holocausto armênio, a prisão e acusação de centenas de jornalistas, a situação não resolvida dos curdos, as exigências de uma grande Turquia que iria ressuscitar a tradição do império Osman, a imposição ocasional da legislação religiosa etc.), mas que acabaram todos sendo considerados como pequenas manchas que não deveriam ter sido autorizadas a borrar a imagem internacional de um país em que, aparentemente, a última coisa que se poderia esperar são protestos – eles simplesmente não deveriam ter acontecido.

Então o inesperado aconteceu: explodiram os protestos da Praça Taksim, no centro de Istambul. E hoje todo mundo já sabe que a transformação do tal do parque que faz fronteira com a praça em um centro comercial não foi exatamente o motivo dos protestos; um mal-estar mais profundo foi ganhando força sob a superfície. É o mesmo com os protestos que eclodiram no Brasil em meados de junho: foram sim desencadeados por um pequeno aumento no preço do transporte público, mas continuaram mesmo após essa medida ser revogada. Mais uma vez, os protestos explodiram em um país que, ao menos de acordo com os meios de comunicação, encontrava-se no seu ápice econômico, desfrutando da alta confiança depositada em seu futuro. Somou-se ao mistério o fato de que os protestos foram imediatamente apoiados pela presidente Dilma Roussef, que afirmou estar “encantada” por eles. Sendo assim, quem são os verdadeiros alvos de inquietação dos manifestantes sobre a corrupção e desintegração dos serviços públicos?

Em suma, a Turquia quente de repente se tornou uma fria. Então sobre o que foram realmente os protestos? É crucial não limitá-los a uma sociedade civil secular impondo-se contra um autoritário governo islâmico apoiado pela maioria muçulmana silenciosa: o que complica a situação é o caráter anticapitalista dos protestos (privatização do espaço público) – o eixo fundamental dos protestos turcos foi a ligação entre o islamismo autoritário e a privatização do espaço público de livre mercado. Essa ligação é justamente o que torna o caso da Turquia tão interessante e de longo alcance: os manifestantes intuitivamente sentiam que a liberdade de mercado e o fundamentalismo religioso não são mutuamente exclusivos, que podem muito bem trabalhar lado a lado – um sinal claro de que o “eterno” casamento entre a democracia e o capitalismo aproxima-se do divórcio.

Devemos evitar o essencialismo aqui: não existe um único objetivo “real” perseguido pelos manifestantes, algo capaz de, uma vez concretizado, reduzir a sensação geral de mal-estar (“os protestos são realmente contra o capitalismo global, contra o fundamentalismo religioso, em defesa das liberdades civis e da democracia…”). O que a maioria das pessoas que participaram dos protestos compartilha é um sentimento fluido de desconforto e descontentamento que sustenta e une demandas particulares. Aqui, novamente, o velho lema de Hegel de que “os segredos dos antigos egípcios eram segredos também para os próprios egípcios” mantém-se plenamente: a luta pela interpretação dos protestos não é apenas “epistemológica”; a luta dos jornalistas e teóricos sobre o verdadeiro teor dos protestos é também uma luta “ontológica”, que diz respeito à coisa em si, que ocorre no centro dos próprios protestos. Há uma batalha acontecendo dentro dos protestos sobre o que eles representam em si: é apenas uma luta contra a administração de uma cidade corrompida? Contra o regime islâmico autoritário? Contra a privatização dos espaços públicos? O desfecho dessa situação está em aberto, e será resultado do processo político atualmente em curso.

O mesmo vale para a dimensão espacial dos protestos. Já em 2011, quando uma onda de manifestações estava explodindo por toda a Europa e pelo Oriente Médio, muitos comentaristas insistiam que não deveríamos tratá-los como momentos de um mesmo movimento de protestos globais, pois cada um deles reagia a uma situação específica: no Egito, os manifestantes exigiam aquilo que as sociedades contra as quais o movimento Occupy protestava já tinham (a liberdade e a democracia); até mesmo nos países muçulmanos, a Primavera Árabe no Egito e a Revolução Verde no Irã eram fundamentalmente diferentes: enquanto o primeiro dirigia-se contra um autoritário regime pró-ocidental e corrupto, o segundo condenava o autoritarismo islâmico). É fácil observar como essa particularização de protestos ajuda os defensores da ordem mundial existente: não há nenhuma ameaça contra a ordem global como tal, e sim problemas locais específicos.

Aqui, no entanto, deve-se ressuscitar o bom e velho conceito marxista de totalidade – neste caso, da totalidade do capitalismo global. O capitalismo global é um processo complexo que afeta diversos países de maneiras variadas, e o que unifica tantos protestos em sua multiplicidade é que são todos reações contra as múltiplas facetas da globalização capitalista. A tendência geral do capitalismo global atual é direcionada à expansão do reino do mercado, combinada ao enclausuramento do espaço público, à diminuição de serviços públicos (saúde, educação, cultura) e ao aumento do funcionamento autoritário do poder político. É dentro desse contexto que os gregos protestam contra o reinado do capital financeiro internacional e contra seu próprio Estado clientelista, ineficiente e corrupto, cada vez menos capaz de fornecer serviços sociais básicos; que os turcos protestam contra a comercialização dos espaços públicos e o autoritarismo religioso; que os egípcios protestaram contra o regime autoritário corrupto apoiado pelas potências ocidentais; que os iranianos protestaram contra o fundamentalismo religioso corrupto e ineficiente etc.

O que une esses protestos é o fato de que nenhum deles pode ser reduzido a uma única questão, pois todos lidam com uma combinação específica de (pelo menos) duas questões: uma econômica, de maior ou menor radicalidade (de temáticas que variam de corrupção e ineficiência até outras francamente anticapitalistas), e outra político-ideológica (que inclui desde demandas pela democracia até exigências para a superação da democracia multipartidária usual). E será que o mesmo já não se aplica ao Occupy Wall Street? Sob a profusão de (por vezes, confusas) declarações, o movimento Occupy sugere duas ideias básicas: i) o descontentamento com o capitalismo como sistema – o problema é o sistema capitalista em si, não a sua corrupção em particular –; e ii) a consciência de que a forma institucionalizada de democracia multipartidária representativa não é suficiente para combater os excessos capitalistas, ou seja, que a democracia tem de ser reinventada.

Isto, é claro, não significa que, uma vez que a verdadeira causa dos protestos é o capitalismo global, a única solução seja sobrepor-se diretamente a ele. A alternativa de negociação pragmática com problemas particulares, esperando por uma transformação radical, é falsa, pois ignora o fato de que o capitalismo global é necessariamente inconsistente: a liberdade de mercado anda de mãos dadas com o fato de os Estados Unidos apoiarem seus próprios agricultores com subsídios; pregar democracia anda de mãos dadas com o apoio à Arábia Saudita. Tal inconsistência, essa necessidade de quebrar suas próprias regras, abre um espaço para intervenções políticas: quando o capitalista global é forçado a violar suas próprias regras, abre-se uma oportunidade para insistir que essas mesmas regras sejam obedecidas. Isto é, exigir coerência e consistência em pontos estrategicamente selecionados nos quais o sistema não consegue se manter coerente e consistente é uma forma de pressionar o sistema como um todo. Em outras palavras, a arte da política reside em insistir em uma determinada demanda que, embora completamente “realista”, perturba o cerne da ideologia hegemônica e implica uma mudança muito mais radical, ou seja, que embora definitivamente viável e legítima, é de fato impossível. Era este o caso do projeto de saúde universal de Obama, razão pela qual as reações contrárias foram tão violentas.

Um movimento político nasce de alguma ideia positiva em prol da qual ele se esforça, mas ao longo de seu prórprio curso essa ideia passa por uma transformação profunda (não apenas uma acomodação tática, mas uma redefinição essencial), porque a ideia em si é comprometida no processo, (sobre)determinada em sua materialização1. Tomemos como exemplo uma revolta motivada por um pedido de justiça: uma vez que as pessoas tornam-se de fato envolvidas, percebem que é necessário muito mais para que seja feita a verdadeira justiça do que apenas as limitadas solicitações com que começaram (revogação de algumas leis etc.). O problema, portanto, é: o que exatamente seria esse “muito mais”? A ideia liberal-pragmática é que os problemas podem ser resolvidos gradualmente, um por um (“as pessoas estão morrendo agora em Ruanda, então esqueçamos sobre a luta anti-imperialista e vamos apenas evitar esse massacre”, ou “temos de lutar contra a pobreza e o racismo aqui e agora, sem esperar o colapso da ordem capitalista global”). Recentemente, John Caputo escreveu:

“Eu ficaria imensamente feliz caso os políticos de extrema esquerda dos Estados Unidos fossem capazes de reformar o sistema, oferecendo serviços de saúde universal, efetivamente redistribuindo a riqueza de forma equitativa e com um código tributário revisado, efetivamente restringindo o financiamento de campanha, garantindo os direitos de todos os eleitores, tratando trabalhadores migrantes humanamente, efetuando uma política externa multilateral que integrasse o poder norte-americano no seio da comunidade internacional etc., ou seja, intervir sobre o capitalismo por meio de reformas sérias e de longo alcance. [...] Se depois de tudo isso, [Alain] Badiou e Žižek se queixassem de que um monstro chamado Capital ainda nos persegue, eu tenderia a cumprimentar esse monstro com um bocejo.”2

O problema aqui não é a conclusão de Caputo de que, se pudéssemos conseguir tudo isso dentro do capitalismo, não teríamos porque não permanecer onde estamos. O problema é a premissa subjacente de que seja possível obter tudo isso dentro do capitalismo global em sua forma atual. E se os problemas de funcionamento do capitalismo enumerados por Caputo não são apenas distúrbios acidentais, mas estruturalmente necessários? E se o sonho de Caputo for um sonho de universalidade (a ordem capitalista universal), sem sintomas, sem os pontos críticos nos quais sua “verdade reprimida” mostra a própria cara?

Os protestos e revoltas atuais são sustentados pela sobreposição de diferentes níveis, e é esta combinação de propostas que representa sua força: eles lutam pela democracia (“normal”, parlamentar) contra regimes autoritários; contra o racismo e o sexismo, especialmente contra o ódio dirigido a imigrantes e refugiados; pelo estado de bem-estar social contra o neoliberalismo; contra a corrupção na política e na economia (empresas que poluem o meio ambiente etc.); por novas formas de democracia que avancem além dos rituais multipartidários (participação etc.); e, finalmente, questionando o sistema capitalista mundial como tal e tentando manter viva a ideia de uma sociedade não capitalista. Duas armadilhas existem aí, a serem evitadas: o falso radicalismo (“o que realmente importa é a abolição do capitalismo liberal-parlamentar, todas as outras lutas são secundárias”) e o falso gradualismo (“no momento, temos de lutar contra a ditadura militar e por uma democracia básica; todos os sonhos socialistas devem ser postos de lado por enquanto”). A situação é, portanto, devidamente sobredeterminada, e devemos inquestionavelmente mobilizar aqui as velhas distinções maoístas entre a contradição principal e as contradições secundárias – isto é, os antagonismos –, entre os que mais interessam no fim e os que dominam hoje. Por exemplo, há situações concretas em que insistir sobre o antagonismo principal significa perder a oportunidade e, portanto, desferir um golpe à própria luta capital.

Somente a política que leva plenamente em conta a complexidade da sobredeterminação merece o nome de estratégia política. Quando temos de lidar com uma luta específica, a questão chave é: como nosso engajamento (ou a falta dele) nesta luta afetará as outras? A regra geral é que quando uma revolta começa contra um regime semidemocrático opressivo (como foi o caso do Oriente Médio em 2011), é fácil mobilizar grandes multidões com palavras de ordem que facilmente agradam (“pela democracia”, “contra a corrupção” etc.). Mas então aproximamo-nos gradualmente de escolhas mais difíceis: quando a nossa revolta é vitoriosa em seu objetivo direto, percebemos que o que realmente nos incomodou (a nosso falta de liberdade, a humilhação, a corrupção social, a falta de perspectiva de uma vida decente) toma uma nova forma e precisamos então admitir que há uma falha em nosso objetivo em si (por exemplo, de que a democracia “normal” também pode ser uma forma de falta de liberdade), ou que devemos exigir mais do que apenas a democracia política – pois a vida social e a economia também devem ser democratizadas. Em suma, o que à primeira vista tomamos como um fracasso que só atingia um princípio nobre (a liberdade democrática) é afinal percebido como fracasso inerente ao próprio princípio. Essa descoberta – de que o princípio pelo qual lutamos pode ser inerentemente viciado – é um grande passo de pedagogia política.

A ideologia dominante mobiliza aqui todo o seu arsenal para nos impedir de chegar a essa conclusão radical. Seus representantes nos dizem que a liberdade democrática traz consigo sua própria responsabilidade e que esta tem um preço – logo, que é um sinal de imaturidade esperar tanto assim da democracia. Dessa forma, nos culpam por nosso fracasso: segundo eles, em uma sociedade livre somos todos capitalistas investindo na própria vida, quando decidimos, por exemplo, nos focar mais em nossa educação do que em diversão para que sejamos bem sucedidos. Em sentido político mais direto, os Estados Unidos perseguem coerentemente uma estratégia de controle de danos em sua política externa, por meio da recanalização de levantes populares para formas capitalistas-parlamentares aceitáveis: foi o bem sucedido caso da África do Sul, após a queda do regime do apartheid; nas Filipinas, depois da queda de Marcos; na Indonésia, após Suharto etc. É aqui que a política propriamente dita começa: a questão é como seguir adiante depois de finda essa primeira e entusiasmada etapa, como dar o próximo passo sem sucumbir à catástrofe da tentação “totalitária” – como ir além de Mandela sem se tornar Mugabe?

Então, o que significaria isso em um caso concreto? Vamos voltar aos protestos de dois países vizinhos, Grécia e Turquia. Numa primeira abordagem, eles podem parecer totalmente diferentes: a Grécia está enroscada nas políticas ruinosas da austeridade, enquanto a Turquia goza de um boom econômico e está emergindo como uma nova superpotência regional. Mas se, no entanto, cada Turquia gera e contém sua própria Grécia, suas próprias ilhas de miséria? Em uma de suas Elegias de Hollywood, Brecht escreveu sobre essa aldeia (como ele a chama):

A aldeia de Hollywood foi planejada de acordo com a noção
Que as pessoas desse lugar fazem do Céu. Nesse lugar
Elas chegaram à conclusão de que Deus,
Necessitando de um Céu e de um Inferno, não precisou
Planejar dois estabelecimentos, mas
Apenas um: o Céu. Que esse,
Para os pobres e infortunados, funciona
Como Inferno.3
Será que o mesmo não se aplica à aldeia global de hoje, como os casos exemplares do Qatar ou de Dubai, onde há glamour para os ricos e quase escravidão para os trabalhadores imigrantes? Não é de se admirar, então, que um olhar mais atento revele a semelhança subjacente entre a Turquia e a Grécia: privatizações, fechamento de espaços públicos, o desmantelamento dos serviços sociais, a ascensão da política autoritária (basta comparar a ameaça do fechamento da TV pública na Grécia com os sinais de censura na Turquia). Nesse nível elementar, os manifestantes gregos e turcos estão engajados na mesma luta. O verdadeiro evento teria sido então para coordenar ambas, para rejeitar as tentações “patrióticas”, recusar-se a se preocupar com as preocupações de outros (isto é, deixar de enxergar a Grécia e a Turquia como inimigos históricos) e organizar manifestações comuns de solidariedade.

Talvez o próprio futuro dos protestos em curso dependa da capacidade de se organizar essa solidariedade global.


Notas

1. Em seu famoso Prefácio à Contribuição à crítica da economia política (São Paulo, Expressão Popular, 2012), Marx escreveu que, em seu pior modo evolutivo, a humanidade só apresenta a si mesma tarefas que ela é capaz de resolver. Somos tentados a inverter essa declaração e afirmar que a humanidade só apresenta para si tarefas que não pode resolver, desencadeando, assim, um processo imprevisível no decurso do qual a própria tarefa (objetivo) é redefinida.

2. John Caputo e Gianni Vattimo, After the Death of God (Nova York, Columbia University Press, 2007), p. 124-5.

3. Compostas por Bertold Brecht em 1942, as elegias podem ser ouvidas no álbum Supply and Demand, do músico alemão Dagmar Krause, gravado pela Hannibal Records em 1986. Fazem parte de um total de dezesseis canções, compostas por Kurt Weill e Hanns Eisler, e interpretadas por Krause.


*Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011) e o mais recente, Vivendo no fim dos tempos (2012). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente. 


Tradução: Nathalia Gonzaga
Originalmente publicado em: www.esquerda.net (07/07/2013)

7 de ago. de 2013

AFINAL, COM QUE ROUPA EU VOU?

QUEM ESSAS PESSOAS [FOTO ABAIXO] ESTAVAM APLAUDINDO COM TANTO ENTUSIASMO?


DETALHE: Trata-se do Encontro Estadual da DS - Tendência Interna do PT, realizado no dia 
03/08/13, nas dependências do Colégio 2 de Julho,
em Salvador, Bahia.

Respondam a esta Enquete através do COMENTÁRIOS deste Blog ou pelo meu Facebook (https://www.facebook.com/luizorleans). Obrigado!




1 de ago. de 2013

O violento silêncio de um novo começo

Caros leitores e amigos do Blog luizorleans1984, este artigo de Slavoj Žižek é bem antigo mas se encontra na ordem do dia, para quem busca construir a política - sim, a boa política -, com recorte emancipatório. Deixando de lado as críticas a Žižek quanto ao seu perfil "meio atabanado", com tiques nervosos e empolgamento nos debates, atentemo-nos em seu pensamento centrado quando o assunto merece centralidade e foco nos objetivos. Aqui, o filósofo esloveno, estudioso de Hegel, Marx e Lacan, direciona a sua atenção para o sentido final de qualquer iniciativa humana: o objeto da questão, neste caso o capitalismo. (Luiz Orleans)
"Resta um longo caminho a percorrer, e em breve será preciso enfrentar as perguntas realmente difíceis, não sobre o que não queremos, mas sim sobre o que queremos". O comentário é de Slavoj Žižek em artigo no El País, 17-11-2011, sobre o movimento Ocupe Wall Street. A tradução é do Cepat
Eis o artigo.
O que fazer depois da ocupação de Wall Street, com os protestos que começaram longe (Oriente Médio, Grécia, Espanha, Reino Unido) atingiram o centro e agora, fortalecidos, estão se espalhando pelo mundo? Um dos maiores perigos que enfrentam os manifestantes é enamorarem-se por si mesmos. Em São Francisco, numa concentração de solidariedade a Wall Street, no 16 de outubro de 2011, se ouviu um convite para participar no protesto, como se fosse uma concentração hippie dos anos sessenta: "Perguntaram qual é o nosso programa. Estamos aqui para nos divertir".
Organizar uma acampamento é legal, mas o que realmente importa é o que sobra no dia seguinte, o que muda em nossa vida cotidiana. Os manifestantes devem enamorar-se do trabalho duro e paciente. Não são um final, mas um começo, e sua mensagem fundamental é: quebrou-se o tabu, não vivemos no melhor mundo possível, e temos o direito e mesmo o dever, de pensar em alternativas. Em uma espécie de tríade hegeliana, a esquerda ocidental voltou aos seus princípios depois de abandonar o chamado "fundamentalismo da luta de classes" pela pluralidade de lutas anti-racistas, feministas, etc, o problema fundamental volta a ser o "capitalismo". A primeira lição deve ser: não devemos culpar as pessoas, nem atitudes. O problema não é a corrupção ou a ganância, é o sistema que nos empurra a ser corrupto. A solução não é "a rua em frente a Wall Street", mas sim mudar o sistema no qual a rua não pode funcionar sem Wall Street.
Resta um longo caminho a percorrer, e em breve será preciso enfrentar as perguntas realmente difíceis, não sobre o que não queremos, mas sim sobre o que queremos. Que organização social pode substituir o capitalismo atual? Que tipo de líderes precisamos? Que organismos, incluindo os de controle e de repressão? É evidente que as alternativas do século XX não funcionaram. Embora a "organização horizontal" das multidões concentradas, com a sua solidariedade igualitária e seus debates abertos, resulte em algo emocionante, não devemos esquecer o que escreveu Gilbert Keith Chesterton: "Ter uma mente aberta, em si, não é nada; o objetivo de abrir a mente, como o de abrir a boca, é poder fecha-lá com algo sólido dentro". O mesmo acontece com a política em tempos de incerteza: os debates abertos precisam se misturar com novos significantes fundamentais, mas também em respostas concretas para a velha questão leninista: "O que fazer?".
É fácil responder aos ataques conservadores. São anti-americanos os protestos? Quando os conservadores fundamentalistas afirmam que a América é uma nação cristã, convém lembrar o que é o cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária dos que tem fé unidos pelo amor. Os manifestantes são o Espírito Santo, enquanto que em Wall Street, os pagãos adoram a falsos ídolos. São violentos os manifestantes? É verdade que a sua linguagem pode parecer violenta (ocupação e outras mensagens similares), mas são no sentido da violência de Mahatma Gandhi.
São violentos porque não querem que as coisas continuem como antes. Mas que violência é essa comparada com a violência necessária para manter o bom funcionamento do sistema capitalista mundial? Eles são chamados de perdedores, mas não estão os verdadeiros perdedores em Wall Street, os que foram resgatados com o nosso dinheiro, centenas de milhares de milhões? Eles são chamados de socialistas, mas nos Estados Unidos já existe um socialismo para os ricos. Eles são acusados de não respeitar a propriedade privada, mas a especulação que levou ao crash de 2008 acabou com milhares de propriedades privadas, conquista a duras penas, basta lembrar as centenas de execuções hipotecárias.
Eles não são comunistas, se por comunismo, nos referimos ao sistema que merecidamente veio abaixo em 1990, e lembramos que os comunistas que restam hoje, governam o capitalismo mais cruel existente (China). O sucesso do capitalismo comunista chinês é um mau presságio de que o casamento entre capitalismo e democracia está aproximando-se de um divórcio. O único sentido em que podem ser chamados de comunistas é que se preocupam com os bens comuns da natureza, do conhecimento – algo que o sistema está colocando em perigo.
Desprezam-lhes por serem sonhadores, mas os autênticos sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem continuar indefinidamente como estão, com meras mudanças superficiais. Não são sonhadores, é o despertar de um sonho que está se tornando um pesadelo. Não destroem nada, reagem diante da auto-destruição gradual do proprio sistema. Todos conhecemos a típica cena do desenho animado: o gato chega a beira do precipício, mas continua andando em frente, sem saber que já não tem chão sob suas patas, e não cai até que olhe para baixo e veja o abismo. Os que estão fazendo os manifestantes é lembrar aos que têm o poder que precisam olhar para baixo.
Essa é a parte fácil. Os membros do movimento devem cuidar-se dos inimigos e, sobretudo, dos falsos amigos que fingem apoiá-los, mas estão fazendo todo o possível para esvaziar o protesto. Igual ao que nos dão café descafeinado, cerveja sem alcool, o poder tentará transformar os protestos em um gesto moral e inofensivo. No boxe, "abraçar-se" é agarrar o corpo do oponente com os braços para impedir ou dificultar os golpes.  A reação de Bill Clinton aos protestos em Wall Street é um exemplo perfeito do abraço político. Clinton acredita que os protestos são "no conjunto ... algo positivo", mas o preocupa que a causa seja tão difusa: "Devem defender algo concreto, não apenas serem contra, porque se limitam a serem contras, outros irão preencher o vazio que deixam", disse ele.Clinton sugeriu que os membros do movimento apoiem o plano de emprego do presidente Obama, que segundo ele criará "dois milhões de empregos no próximo ano e meio".
No que é preciso resistir nessa etapa, é precisamente nesse desejo de traduzir rapidamente a energia do protesto numa série de demandas "pragmáticas" e "concretas". É verdade que os protestos criaram um vazio: um vazio no terreno da ideologia hegemônica, e precisa-se de tempo para preenchê-la, mas é um vazio carregado de conteúdo, uma abertura para o novo. Os manifestantes sairam as ruas, porque estão cansados de um mundo em que reciclar latas, doar alguns dólares para obras beneficientes ou comprar um cappuccino no Starbucks porque 1% vai para o Terceiro Mundo basta para se sentir confortável. Depois de terceirizar o trabalho e a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até mesmo as relações, perceberam que deixaram por muito tempo os outros cuidarem da política e querem recuperar esse tempo agora.
A arte da política é também insistir em uma reivindicação concreta que, embora seja totalmente "realista", rompe a ideologia hegemônica, ou seja, que, embora viável e legítima, na prática, é impossível (por exemplo, o direito a saúde universal nos EUA). Depois dos protestos de Wall Street, devemos mobilizar as pessoas para essas reivindicações, mas é muito importante manter distância do terreno pragmático das negociações e das propostas "realistas". Não devemos esquecer que qualquer debate que se faça aqui e agora, continuará sendo feito no campo inimigo, e levará tempo para consolidar novos conteúdos. Tudo o que digamos agora poderão tirar de nós (recuperar); tudo menos o nosso silêncio. Este silêncio, esta recusa ao diálogo, aos abraços, é o nosso "terrorismo" tão ameaçador e sinistro como deve ser.

26 de jul. de 2013

VISÃO A PARTIR DE SATURNO

Terra (ponto mais brilhante) é vista a partir de Saturno pela sonda Cassini, da Nasa (Foto: Nasa/Reuters)

por Luiz Orleans


Você, miserável, como eu,
Um ponto.
Orgulhe-se, verme, um ponto, não mais que isso.
Se se afastar, nem isso: só o vazio.
Um, dois, três, dezenas, centenas, milhares, milhões, mil-milhões;
Nada mais que... um ponto.

Então, Tonto, seja mais do que é:
Um ponto, como eu, no vazio do Universo
A ponto de suavemente sumir, e pronto.


A tecnologia a serviço da inclusão social e como política pública


Manejo de plantas medicinais

Este artigo trata, de maneira oportuna, a análise do que vem a ser "sociedade dos três terços", observando os seus aspectos e a urgente necessidade de nos contrapor à sua lógica perversa, com acumulação de força no sentido de empoderamento da classe trabalhadora, através de ações que tornem possível o acesso de todos a tecnologias que promovam o bem estar social, estando elas também sob seu controle.


Aldalice Otterloo (1)


Ao crescente e intensivo processo de globalização dos mercados e da economia foi se configurando um revolucionismo da base técnico-científica do processo produtivo, no contexto do que a literatura denomina de terceira revolução industrial, definida pela microeletrônica associada à informática, engenharia genética e novas fontes de energia.

O que estamos presenciando não é apenas uma mudança quantitativa mas uma mudança qualitativa na relação do ser humano com a realidade e com a natureza. Enquanto a 1ª e a 2ª revoluções significaram uma potenciação fantástica da força física humana, a terceira amplia a sua capacidade mental e intelectual e, contraditoriamente, sua capacidade destrutiva.

Quais são os riscos e sinais preocupantes dessas mudanças? Uma concentração crescente do capital, da riqueza e do conhecimento, que desenha – de forma globalizada – uma desordem mundial, que transforma a natureza e as pessoas em mercadoria e sobrevive às custas da exploração e humilhação de milhões de seres humanos. A sociedade mundial está caracterizada pelo que se vem denominando de sociedade dos três terços: um terço integrado ao trabalho e ao consumo, um terço precarizado no trabalho e no consumo e um terço excluído. Segundo dados recentes da OIT – Organização Internacional do Trabalho, existem aproximadamente 800 milhões de desempregados e trabalhadores precarizados e, ao mesmo tempo, a incorporação de aproximadamente 75 milhões de crianças entre 10 e 14 anos em trabalhos desumanizadores.

Esses dados explicitam a contradição mais crucial que vive hoje, em termos planetários, o capitalismo: nunca a humanidade teve à sua disposição tanta tecnologia para diminuir o tempo de trabalho necessário a uma sobrevivência digna e nunca, talvez, tenha-se produzido tanto tempo precarizado e sofrido do desemprego estrutural e do subemprego (2).

Em 2008, uma crise aguda sacudiu o mundo. Para alguns, tratava-se de crise estrutural, social, econômica, ambiental, política. Para outros, uma crise esperada, mais uma das crises financeiras cíclicas do sistema capitalista, evidenciadas nas últimas décadas. De qualquer forma a reflexão que fica é a de que apesar da gravidade, esta crise não pareceu ser suficiente para declarar o fim do neoliberalismo e suas pesadas conseqüências no acirramento das desigualdades no mundo, conseqüências que deixam sobre a parte mais pobre do mundo e da população, as maiores contas.

Um outro ponto a destacar da crise está relacionado à questão ambiental. Os indicadores socioambientais tanto a nível local quanto a nível nacional e internacional emitem um alerta máximo diante da insustentabilidade da atual dinâmica do desenvolvimento no mundo. Enquanto as atenções mundiais se concentram nas mudanças climáticas, na energia e na segurança alimentar, estas temáticas ganham uma proporção inédita para a região Amazônica.

Considerada uma reserva mundial em termos de recursos hídricos, de biodiversidade e como bioma indispensável ao equilíbrio do meio ambiente mundial, a região Amazônica torna-se cada vez mais objeto de disputa de interesses contrários: atender a uma missão a ela imposta desde a época colonial, ou seja, fornecer matéria prima para o mercado internacional (madeira nobre, carne “verde” de pastagens em grande extensão, minério, energia na forma de grandes hidrelétricas e agrocombustíveis) ou garantir a sua missão de equilíbrio no sistema mundial de meio ambiente (preservação, implantação, ampliação e conservação de reservas naturais, manejo sustentável de recursos naturais, entre outros). Este embate entre interesses conflitantes atinge atualmente uma densidade inédita na Amazônia brasileira e especialmente na parte Oriental onde se encontram os mais altos índices de desmatamento, considerados por muitos, como insuportáveis, atingindo diretamente os povos da Amazônia.

No Brasil, é necessário reconhecer avanços em termos de políticas afirmativas e proposições de mecanismos de participação na proposição dessas políticas: os últimos anos testemunham um grande número de conferências sobre as mais diversas políticas públicas, audiências públicas, leis de atenção e garantia de alguns direitos, a exemplo do PROUNI, Maria da Penha, políticas de enfrentamento à violências, políticas de cotas etc. Estas, entretanto, não tem conseguido se constituir em políticas universalizantes, mantendo um caráter focalista, microscópico e com pouca participação efetiva da população no controle. O contexto ainda é de grande negação dos direitos, sendo evidenciadas importantes lacunas em relação à população mais pobre, em termos de acesso a serviços básicos (saúde, educação, trabalho, moradia etc), mesmo com adoção de políticas de garantia de renda mínima para um grande número de famílias que, reconhecidamente, as tem tirado da miséria absoluta.

Entretanto, o último diagnóstico produzido pelo IPEA (3) sobre o Raio-X da Desigualdade no Brasil, demonstra que ainda estamos longe da inclusão social que almejamos. Esse diagnóstico reuniu informações sistematizadas em todos os Ministérios, Fundações e Autarquias sobre a efetivação das políticas sociais em todos os 5564 municípios do Brasil e concluiu que a presença do Estado é insignificante na grande maioria, contribuindo para gerar um profundo fosso social e econômico em todas as regiões do país, relacionados à previdência social, assistência social, saúde, educação, trabalho e renda, infra-estrutura, segurança pública e cultura.

Constata-se ainda que as políticas públicas desenvolvidas são cada vez mais emergenciais, não objetivando mudanças nas estruturas que produzem e reproduzem as desigualdades em nossa sociedade e não chegam a desenhar uma proposta de desenvolvimento qualitativamente distinta do modelo hegemônico imposto.

É nesse contexto que nasce, em abril de 2005, a Rede de Tecnologia Social com o objetivo estratégico de construir possibilidades de gerar mudanças sociais, através da socialização de tecnologias, do saber-fazer a interlocução com os diferentes saberes existentes, do democratizar informações e estimular a ação conjunta das instituições (governamentais e não governamentais) que a compõem, para a integração das políticas públicas.

Esta Rede reconhece a produção de tecnologias não direcionadas ao mercado, mas às necessidades humanas, por isso a tecnologia social vai sendo gerada na contramão das tecnologias convencionais, com claro enfoque na inclusão social, de forma pró-ativa, coletiva, solidária e democrática, pois possibilita: fluxo livre de informações; ambiência de conectividade; ambiência de cooperação; informação relevante, clara e integral; ação humana deliberada; participação efetiva da comunidade no planejamento, monitoramento e avaliação, resultando em mudanças na qualidade de vida das pessoas envolvidas.

A RTS reúne, organiza, articula e integra um conjunto de instituições com o propósito de contribuir para a promoção do desenvolvimento sustentável mediante a difusão e a reaplicação em escala de tecnologias sociais.

Tecnologia Social compreende produtos, técnicas ou metodologias, reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representam efetivas soluções de transformação social.

Reafirma-se a visão de que a tecnologia social deve ser potencializada na perspectiva de se ampliar a compreensão dos referenciais sobre desenvolvimento e inclusão social, e de se construir alternativas que possibilitem: a) a inversão da lógica perversa que sustenta o atual modelo de desenvolvimento, responsável pelo fomento das desigualdades, da exclusão social, da precarização das relações de trabalho; e b) a difusão e reaplicação, de forma democrática e participativa, de tecnologias sociais, na perspectiva da co-gestão, da produção de conhecimentos, da solidariedade, do aprofundamento da consciência comunitária ampliando o conceito de inclusão social e de sustentabilidade.

Mas promover a inclusão social, num contexto tão complexo como o que vivemos hoje, no qual o Brasil assume uma nova posição na geopolítica mundial e no qual o desenvolvimentismo reaparece como a “nova utopia” de parcela significativa da esquerda, em especial de segmentos que chegaram ao comando de Estados Nacionais, reafirmando através de suas ações um desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico, fundado na exploração intensiva dos recursos naturais, reproduzindo os padrões de produção e de consumo dos países “desenvolvidos” como as principais referências, é lutar na contramão da história.

É necessário um grande movimento de resistência que aglutine forças capazes de romper com essa lógica desenvolvimentista, para concretizar um sistema ético-político efetivamente democrático que assegure não apenas os direitos civis, como também os direitos sociais no acesso à educação, à saúde, à moradia, à possibilidade de ter uma atividade produtiva que garanta uma renda mínima, com a qual todas as pessoas possam ter uma vida digna.

Os processos que vem sendo construídos pela RTS (4) focados na geração de trabalho e renda, mas que integra educação, saúde, participação e cultura, pode ser uma resposta efetiva de inclusão social já que envolve sujeitos coletivos - governamentais e não governamentais - como governo, empresas estatais, organizações da sociedade civil e universidades públicas, possibilitando através das suas mantenedoras o reconhecimento e validação das tecnologias sociais, estimulando: i) sua reaplicação em escala, viabilizando processos por meio dos quais o parceiro reaplicador estabelece uma relação de troca de conhecimentos visando à apropriação e à recriação da tecnologia social pela comunidade. Estes processos prevêem, necessariamente, atividades de mobilização, sensibilização, educação, capacitação e de adequação da tecnologia às especificidades locais; ii) o desenvolvimento de novas tecnologias sociais para atender a necessidades locais, quando não existirem tecnologias sociais adequadas; e iii) o monitoramento e avaliação dos resultados das atividades tanto de reaplicação quanto de difusão.

Para isso faz-se necessário ampliar e fortalecer os processos em curso que disseminam o conceito de tecnologia social e constroem espaços coletivos que agregam diferentes atores sociais, para que se reconheçam como produtores de uma nova cultura política de participação e formas inovadoras de produção e de consumo; e intensificar as ações de comunicação sobre a identidade e atuação das organizações e movimentos comunitários e prosseguir o debate da inter-relação Estado e sociedade civil no que se refere à autonomia e participação qualificada na construção da esfera pública.

A tecnologia a serviço da inclusão social deve considerar o diálogo entre sujeitos e entre teoria e prática e a perspectiva da transformação social que, necessariamente, inclui mudanças não apenas no Estado e/ou na economia, mas em todos os âmbitos da vida, incluindo a relação entre os seres humanos, homens e mulheres, e destes com a natureza.


_________________________________________

1 - Aldalice Moura da Cruz Otterloo é pedagoga, diretora executiva da Associação Brasileira de ONGs- ABONG e diretora geral do Instituto Universidade Popular – UNIPOP.
2 - FRIGOTO, Gaudêncio – A escola como ambiente de aprendizagem. S. Paulo. PUC. Texto de 2003.
3 - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – janeiro/fevereiro de 2010, Ano 7, nº 58
4 - Planejamento estratégico da RTS 
IMAGEM: Projeto Farmácia da Terra ensina manejo de plantas medicinaisFonte:  http://www.brasil.gov.br/sobre/ciencia-e-tecnologia/desenvolvimento-sustentavel/tecnologia-social